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O reconhecimento fotográfico é um meio de prova utilizado na fase de investigação de um crime para identificar os possíveis autores. Como consta no art. 4º da Resolução n.484 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as fotografias só devem ser utilizadas pelas autoridades policiais quando o reconhecimento presencial dos suspeitos não puder acontecer.
Mas no Brasil, a exceção virou regra, provocando a ação das cortes superiores para anular sentenças baseadas unicamente em reconhecimentos fotográficos indevidos. E na maioria dos casos, a cor da pele das vítimas das injustiças é negra.
Repercussão
Em Pernambuco, o reconhecimento fotográfico voltou ao centro do debate após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anular a condenação de um olindense a 30 anos e 10 meses de prisão por homicídio e roubo na cidade de Olinda, no Grande Recife. O caso aconteceu em 2018.
Uma das vítimas, em depoimento à polícia, identificou o suspeito com base em uma fotografia 3x4 de quando ele tinha 15 anos de idade, cuja descrição era de "branco, magro e baixo". A justiça pernambucana admitiu a prova como suficiente e condenou o réu, já aos 24 anos de idade. Ou seja, nove anos após o registro da foto.
De acordo com a Defensoria Pública do Estado, que fez a defesa do acusado, outros meios de prova foram desconsiderados ao longo da investigação, o que tornaria a condenação indevida. Três recursos foram apresentados às instâncias pernambucanas, que adotaram entendimento contrário e deram seguimento aos trâmites jurídicos.
Isso motivou a Defensoria a recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). No dia 10 de dezembro, veio o parecer do ministro relator do caso, Rogério Schietti Cruz: “não havia indícios suficientes de autoria do crime para pronúncia do paciente”. O voto foi acompanhado de maneira unânime pela Sexta Turma do STJ, que determinou a soltura do pernambucano.
Recorrência
O Defensor-Público Geral de Pernambuco, Henrique Seixas, observa que o número de processados e condenados exclusivamente com base no reconhecimento fotográfico é alto. E como esse é um problema de caráter nacional, a atuação da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco tem sido cada vez mais criteriosa. Ele explica como esse meio de prova deveria ser conduzido.
“O reconhecimento fotográfico deveria ser a exceção, já que a regra prevista em nosso ordenamento é o reconhecimento presencial. E quando o fotográfico, devidamente justificado, deveriam ser observadas uma série de cautelas. Por exemplo, a pessoa suspeita deve ser alinhada a outras pessoas com características físicas semelhantes, e o procedimento deve ser gravado em vídeo. Infelizmente, todas essas garantias, em regra, não são observadas, o que tem gerado uma série de injustiças”, disse.
O argumento é reforçado pelo advogado criminalista e professor de Direito Penal Victor Pontes. Ele lembra que o reconhecimento - assim como o depoimento de uma testemunha e o interrogatório do acusado - deve ser convalidado em juízo.
Então, se as falhas na fase do inquérito passam e resultam em condenações indevidas, é porque há um vício na produção desse meio de prova.
“Essas provas têm que ser analisadas em conjunto com outros elementos para, no final, tomar uma decisão. Uma prova de forma isolada não pode ser considerada para embasar a condenação de um indivíduo. O grande problema no Brasil é que há uma tendência em relativizar as nulidades. Existe uma formalidade sobre como deve ser feito esse reconhecimento fotográfico, mas que normalmente é descumprida”, aponta.
Jurisprudência
Para tomar a decisão no caso do pernambucano, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) se baseou no que descreve o art. 226 do Código do Processo Penal (CPP), já detalhado pelo Defensor-Público Geral de Pernambuco, Henrique Seixas, e pelo advogado criminalista e professor de Direito Penal Victor Tavares.
Em 2022, diante de outro caso de condenação indevida por uso exclusivo de reconhecimento fotográfico, o ministro Rogerio Schietti propôs que “o reconhecimento do suspeito por mera exibição de fotografia(s), ao reconhecer, a par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo”.
O Supremo Tribunal Federal (STF) também adota a jurisprudência do STJ. O entendimento da Sexta Turma foi citado pelo ministro Gilmar Mendes para declarar a nulidade do reconhecimento fotográfico e absolver um homem condenado por roubo. Não havia outras provas que comprovassem a autoria do crime.
Pele alvo
Entre negligências e pareceres, brasileiros estão neste momento aprisionados injustamente por uso indevido do reconhecimento fotográfico como prova única para condenação. E de acordo com um levantamento realizado pelo Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) em 2021, 83% desses brasileiros são negros.
O Jornal Nacional, da TV Globo, mostrou, em maio de 2022, o caso de três homens negros vítimas desse procedimento. Raoni Lázaro Rocha Barbosa, Jeferson Pereira da Silva e Luiz Carlos da Costa Justino não sabiam como suas fotos tinham ido parar nas delegacias. Todos foram presos injustamente por crimes que não cometeram - e com base em uma única foto.
O coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec), Pablo Nunes, lembra que, no Brasil, os primeiros registros de pessoas suspeitas ou procuradas a partir de fotografias são do período da escravidão.
“Esse expediente já é muito antigo e tem, obviamente, levado a muitas condenações e injustiças, principalmente a pessoas negras. É um sistema voltado a encarcerar pessoas negras, e por isso mesmo vai cometer mais injustiças com pessoas negras do que com pessoas brancas. Aliado a isso, é muito mais ‘aceitável’ que os direitos de pessoas negras sejam flexibilizados. É por isso que a gente vê menos acesso à saúde de qualidade, saneamento básico e a um julgamento justo. O fato do uso de reconhecimento fotográfico, de maneira frequente, se transformar em condenações injustas, é mais uma face do que o racismo estrutural proporciona para a população negra no país”, explica.
Pablo Nunes acredita que a atuação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para reverter condenações baseadas apenas no reconhecimento fotográfico dá sinais de melhorias no sistema jurídico brasileiro. Porém, o caminho é longo.
“Há muito trabalho ainda para ser feito, tendo em vista o estado de coisas que a gente encontra hoje nesse sistema de justiça voltado à condenação de pessoas negras, e que de maneira frequente registra erros crassos e graves. Em termos gerais, apesar das decisões do STJ serem importantes do ponto de vista de construir uma jurisprudência, ainda há muito o que fazer para que o sistema de justiça possa realmente ser justo para pessoas negras no Brasil”, conclui.
O caminho é longo não somente para o Judiciário brasileiro. Afinal, se a falha em não usar outras provas para condenar um acusado acontece com tanta frequência, significa que esse também é um problema de ordem social - ou pelo menos assim deveria ser encarado.
FONTE: CBN RECIFE.