(FOLHAPRESS) - Morreu neste domingo (29), aos 100 anos, o ex-presidente dos EUA e Nobel da Paz Jimmy Carter. Ele faleceu em sua casa em Plains, no estado da Geórgia, segundo comunicado do Carter Center, o instituto que leva seu nome.
O democrata recebia cuidados paliativos em sua casa após uma série de internações hospitalares. Sua mulher e companheira por 77 anos, Rosalynn, também estava sob o mesmo atendimento domiciliar e morreu em 19 de novembro do ano passado, aos 96 anos. Em sua última aparição pública, Carter acompanhou o funeral da esposa, e, em outubro, votou em Kamala Harris pelo correio.
Em seu penúltimo livro, publicado em 2015, Carter lembrou que passara só quatro dos seus então quase cem anos na Casa Branca e que não foram eles que dominaram suas memórias. O democrata teve a mais longa pós-Presidência da história dos EUA, e foi no período após deixar o cargo que se consagrou mundialmente.
Para um político tradicional, tornar-se conhecido como "o melhor ex-presidente" da história, em clara alusão ao fracasso de seu desempenho no poder, é provavelmente muito pouco reconfortante. Mas para James Earl Carter Jr., que nunca usou seu pomposo nome na íntegra, ter sido um solitário promotor de boas causas e o ganhador do Nobel da Paz talvez tenha valido mais do que ter sido líder dos EUA.
Carter sempre tentou se diferenciar pela simplicidade. Em sua posse como 39º presidente americano, usou terno comum, e fez a pé, de mãos dadas com Rosalynn e a filha, Amy, o caminho de 2,4 km entre o Congresso e a Casa Branca pela avenida Pensilvânia.
No discurso inaugural, usou conceitos e palavras raras nessas ocasiões, como "humildade, misericórdia e justiça" em vez de grandiloquentes saudações ao poderio econômico e militar dos EUA. Ao contrário dos presidentes anteriores e posteriores com filhos em idade escolar, matriculou Amy numa escola pública. Durante todo o governo, deu aulas dominicais às crianças numa igreja batista.
Esse jeito de enfatizar a simplicidade pode ter sido apenas um golpe de marketing bem-sucedido. Mas colocou Carter num patamar diverso, talvez único, entre os seus colegas de cargo.
Ele nasceu em 1º de outubro de 1924, na pequena cidade agrícola de Plains. Sua casa na infância não dispunha de energia elétrica nem água corrente, mas a família era uma das mais prósperas da região.
O pai era agricultor; a mãe, enfermeira, foi responsável pelo parto de Rosalynn. Dias depois, Carter, à época com dois anos, foi levado pela mãe para "espiar no berço e ver o mais novo bebê da nossa rua", segundo o próprio ex-presidente afirmou em sua autobiografia. Ele se referia à esposa como uma "extensão quase igual" de si mesmo.
Com a Segunda Guerra Mundial, Carter ingressou na Academia Naval, onde se formou oficial engenheiro em 1946. No mesmo ano, casou-se com Rosalynn Smith, também de Plains. Sem deixar a Marinha, fez pós-graduação em física nuclear e trabalhou em submarinos atômicos até 1953, quando o pai morreu, e ele voltou à Geórgia para cuidar da fazenda de amendoim da família.
Seu pai havia sido deputado estadual, e o filho resolveu substituí-lo. Foi reeleito, candidatou-se a governador em 1966 e perdeu para o ultraconservador Lester Maddox. Em 1970, tentou de novo e venceu.
O ambiente político americano no início dos anos 1970 estava muito anuviado pelo escândalo de Watergate, que levou à renúncia do presidente Richard Nixon e era propício para um líder distante dos esquemas de Washington e com linguagem moralista, como o governador Carter.
Jovem -tinha 52 anos-, sem nunca ter ocupado posições públicas federais, com modos quase ingênuos ("Meu nome é Jimmy Carter e estou concorrendo à Presidência; sou fazendeiro, mecânico, negociante, cientista e cristão", repetia sempre ao se apresentar aos eleitores), Carter ganhou a eleição de 1976, com 51% dos votos populares e 297 dos 538 delegados do Colégio Eleitoral.
O primeiro político de expressão nacional a endossar sua pretensão presidencial foi o então senador Joe Biden. Os dois mantiveram relação de amizade que perdurou até o fim da vida de Carter. Essa proximidade foi muitas vezes lembrada pelos problemas, em especial os econômicos, enfrentados pelo atual presidente, parcialmente similares aos de quase 50 anos atrás.
Em agosto, um neto de Carter disse que o avô estava ansioso para votar em Kamala Harris na eleição presidencial deste ano.
A vitória sobre Gerald Ford, vice de Nixon, foi acima de tudo resultado do desgaste provocado por Watergate. Mas a religiosidade de Carter teve papel importante -ela o ajudou a recrutar contingentes de evangélicos até então distantes do debate eleitoral.
Carter era um progressista, mas seu êxito nas urnas ajudou a atiçar a direita religiosa, que nos 40 anos seguintes se tornou fator fundamental na política americana.
Seu governo foi complicado desde o começo, e um dos seus maiores problemas foi energia: o inverno rigoroso de 1977 agravou os efeitos ainda severos do choque do petróleo de 1973 e 1974.
Carter resolveu agir de modo pouco popular: contenção de energia e impostos sobre desperdício. E dizia o que os americanos não queriam ouvir: seu país, com 5% da população mundial, não podia continuar a consumir um terço da energia do planeta.
Os problemas econômicos o atormentaram durante todo o mandato, e ele não soube resolvê-los. Em 1980, a inflação estava em 12%, o desemprego em 7,5% e a taxa anual de juros em 20%, números intoleráveis para os EUA. Diante desses reveses, suas realizações como presidente encolheram diante da opinião pública, apesar de não terem sido poucas.
Carter fez uma grande reforma administrativa no governo federal, ampliou o sistema de parques nacionais, nomeou mais negros, mulheres e hispânicos para cargos do primeiro escalão do que qualquer predecessor, desregulamentou a aviação civil, enfatizou educação e meio ambiente.
No campo internacional, as conquistas foram ainda maiores: obteve um inédito acordo entre Egito e Israel após mediar durante 13 dias em Camp David negociações entre Anwar El Sadat e Menachem Begin; estabeleceu plenas relações diplomáticas entre EUA e China; devolveu o controle do Canal do Panamá aos panamenhos; chegou ao importante tratado Salt II de limitação de armas nucleares com a União Soviética, promoveu a causa dos direitos humanos pelo mundo todo, inclusive no Brasil, onde esteve em tensa visita ao presidente Ernesto Geisel em 1978.