Em 1969, atuando como cronista do Jornal do Brasil, Clarice Lispector escreveu sobre o que chamava de “milagre das folhas”: a frequência com que folhas se desprendiam das árvores e lhe caíam sobre o rosto, o cabelo e, mais milagrosamente, sobre os cílios. Não sabia, então, mas o milagre seria eternizado quase 40 anos mais tarde, quando uma estátua em sua homenagem ocuparia lugar definitivo na Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista, no Recife. Quantas folhas caem sobre o monumento todos os dias, é impossível saber. Mas há outro “milagre” sendo articulado em torno da escultura (criada por Demetrio Albuquerque): o de atrair pessoas. Nesta semana, a versão em pedra da escritora ucraniana passa a constar em mapeamento inédito das mais de 200 esculturas e 70 murais distribuídos pela cidade. Concebido pela arquiteta e pesquisadora pernambucana Lúcia Padilha, o projeto Recife Arte Pública chega às mãos do público em formato de site e livreto gratuito, lançados na próxima quinta.
Arte-educadora e arquiteta há 25 anos, Lúcia passou a dedicar olhar mais atento aos monumentos da cidade ao assinar, com Augusto Ferrer, Eddy Polo e Jorge Alberto Barbosa, a escultura Carne da minha perna (escultura do caranguejo), instalada na Rua da Aurora, em Santo Amaro, em 2004. “Era necessário conservar a nossa obra, agora pública, composta de ferro e localizada junto ao rio, além de protegê-la do vandalismo, identificá-la devidamente, explicar motivações. Passei a me preocupar com o caranguejo e a observar outras esculturas com mais cuidado”, conta. “Anos mais tarde, me ocorreu a pergunta: por que não mapear todas as obras de arte públicas do Recife? Parecia impossível, mas decidi tentar.” O projeto recebeu apoio do Funcultura em 2013 - quando ela já pré-catalogara cerca de 30 murais e 100 esculturas - e foi desdobrado em duas vertentes: livreto dedicado às esculturas e site (recifeartepublica.com.br), aos murais.
Dividida em quatro zonas principais - Leste (Centro), Norte, Oeste e Sul -, a capital recebeu visitas dos pesquisadores em 32 bairros da Região Metropolitana. Lúcia Padilha, Janaísa Cardoso, Niedja Santos e Hassan Santos, acompanhados pelos fotógrafos Nando Chiappetta (esculturas), do Diario, e Breno Laprovitera (murais), encontraram esculturas francesas do século 18, peças em bronze e obras raras assinadas por pernambucanos como Abelardo da Hora e Francisco Brennand. “Éramos surpreendidos a todo tempo por novas esculturas. Algumas, encontradas por acaso, no percurso. Outras, indicadas por amigos, garimpadas na pesquisa”, diz Hassan Santos, arte-educador formado em design.
Foi nas prateleiras da casa da mãe que Hassan encontrou a principal referência bibliográfica do projeto: exemplar do livro Monumentos do Recife, lançado por Rubem Franca em 1977. Segundo ele, até mesmo a Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana (Emlurb), consultada pelos pesquisadores pela atuação na conservação dos monumentos, possui apenas fotocópias da publicação. “É uma fonte raríssima. Isso releva a escassez de pesquisas na área e ressalta a importância e o ineditismo do mapeamento”, observa. Com isso, a distribuição gratuita de 4 mil exemplares - 2 mil deles concedidos pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) - do livreto Recife Arte Pública: Esculturas pareceu insuficiente aos olhos do grupo. Decidiram disponibilizá-lo na web, não somente nos pontos turísticos e culturais da cidade. Pretendem, ainda, captar recursos para transformar o projeto em aplicativo para smartphones.
Além de apontar o Centro do Recife (citado na pesquisa como Zona Leste) como coração do roteiro de arte pública - a região tem pelo menos 51 pontos com monumentos, contra 21 da Zona Norte, 19 da Zona Oeste e 11 da Zona Sul -, o projeto revela, dizem os autores, a necessidade de maior preservação patrimonial, já que muitas esculturas estavam depredadas ou mal conservadas na catalogação. “Escolas públicas e privadas deveriam orientar os mais jovens a respeitar as obras. Muitos desconhecem o significado delas, a história por trás de cada monumento e, por isso, praticam vandalismo ou não se esforçam para combatê-lo”, opina Lúcia. Para ela, a principal contribuição do mapeamento realizado nos últimos dois anos é ressignificar a arte pública perante os recifenses, transformando o acervo em ferramenta de relacionamento - “sensorial, universal”, ela reforça - entre as pessoas e a cidade. A exposição fotográfica do projeto - aberta ao público a partir do lançamento do livreto e do site homônimos - fica em cartaz até o fim de março, no Museu Murillo La Greca, no Parnamirim.
FONTE: DIARIO DE PERNAMBUCO